quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Uma análise sobre as paredes


Tudo era branco naquela sala. A disposição dos móveis incomodava profundamente à primeira vista. Parecia que o óbvio estava ali, nos objetos, nos móveis. Havia se acostumado com a ausência das cores e dos fingimentos.  Do lado de fora, chovia muito. O barulho da chuva atrapalhava os pensamentos. 
– P, você fez o que tínhamos combinado? – perguntou V.

– Sim, estive a sentir a idéia de mim, isto é, aquilo que creio que sou... O conceito de personalidade é completamente arbitrário. Como posso julgar a mim mesmo ? Que critérios tenho ?

– P., concordo com você sobre a questão da personalidade. De fato, os nossos critérios de julgamento são parcos e altamente variáveis. Veja a moral, por exemplo. Muitas pessoas julgam ter uma moral intacta e não sabem o quão variável ela pode ser em determinados momentos.

– A moral assim como a verdade não existe. – disse a V, interrompendo-a.

– Verdade, P. ? Como assim ?

– Sim, verdade. Só posso dizer se algo é real, caso o sinta. A minha realidade estão nas minhas sensações. Se a verdade  existe, eu não posso senti-la. Logo, não posso ter certeza que ela existe. A verdade está no mesmo lugar da incerteza e do não-ser.

– Um momento, P. Você está me dizendo que só acredita nas suas sensações. É isso ?
Assenti com a cabeça, pois era o único gesto fingido permitido naquele ambiente.

– Entendi, entendi. Ao considerar somente suas sensações, você não corre o risco de se enganar pelos seus sentidos ?

– Se as minhas sensações são um erro, a verdade está fora de mim, das minhas sensações. Considerando que a ideia de verdade é minha, ela está no campo das minhas sensações. A única ciência que satisfaz são as sensações...

– Essa verdade que está fora de você é uma contradição. – respondeu V.

– Sim, sim. Em consequência, é erro.

Parei por um instante e pensei nos erros cometidos. Dez decisões mudam a sua vida. Cinco decisões são conscientes. A vida te obriga a ser inconsciente. Ninguém consegue estar-no-mundo impune. Não falei isso para V. O branco das paredes começavam a me incomodar um pouco mais.

– V, sobre aquilo da semana passada... preciso confessar que fiz conscientemente. Renunciei à tudo. Escolhi o modo como queria compor a minha vida.

– P., do que estamos falando ?

– Dos processos burocráticos, diários, ordinários a que todos nós nos submetemos. – respondi de forma quase contida. Não me interessa ter essa existência: banal, corriqueira... Todo sentimento humano é vulgar. Quero antes não saber de si. Acho que isso é viver. Me sinto cansado. Até o que para as outras pessoas é diversão, parece-me cansaço. Não sei ter essa existência.

– Vamos começar pelo final... que tipo de existência você acha ser possível ?

– Existência possível, existência possível... creio que são todas as que não são minhas. Posso ter tudo desde que não seja eu, não seja mais meu.

Nesse momento, V. me olhou, procurando algum sentido naquela frase. Creio que ficou dois segundos a fitar-me os olhos diretamente. Raramente, trocávamos olhares assim. Acho que era pouco usual na relação que tínhamos. Resolvi falar alguma coisa para quebrar o silêncio instalado.

– Você deve achar que nada do que eu falo faz sentido ? – especulei, esperando uma afirmativa negativa. Afinal, se eu falei aquilo, esperava algum tipo de compreensão de volta.

– Não, disse V, tentando encenar uma farsa cujo primeiro ato já havia perdido. Acho natural querermos o que é o do outro, o que não é nosso.
Interrompi V. nessa hora. Ela, de fato, não havia entendido.

– Não, não. Não é disso que eu estava falando. Não quero o do outro, aquela existência viva. Quero a minha vida composta por todas as outras. Quando renunciei a vida, quis ter a minha própria, a minha própria existência múltipla. Não consigo ser um. Penso que estou em Londres e essa existência é muito mais completa do que qualquer viagem. O lugar que substitui a vida é o sonho. Eu só posso ver alguma coisa se eu sonhar, de alguma maneira. O sonho é uma natureza real. Talvez isso pareça apenas contraditório para você, V.

– Um pouco, P. Estou tentando perceber as relações na sua fala.... Por que você tem essa necessidade de ser múltiplo ?

– Eu pensei durante muitos anos sobre isso. Confesso que sempre tendi a ser outro, desde a infância, antes de ter consciência do que significava ser outro. Acho que uma existência só não basta. É grande a sensação da vida, embora sem atos. Não preciso comer uma maçã para saber o seu gosto. Não preciso e não quero. Prefiro a viagem, a experiência pela sensação do que pode ser. De forma geral, o conhecimento é uma forma de cegueira. Quem inventou o espelho trouxe um grande prejuízo para todos. Não ver é enxergar.

– Não ver é enxergar.... em que situações você acha que isso acontece, P? Quero dizer, em que situações acha que enxerga mais não vendo ?

– Poderia dizer todas, mas escaparia o inominável nisso. Isso acontece, por exemplo, em viagens. Passei hoje a manhã no trem indo de um extremo ao outro da cidade... não lembro de nada do que se passou na viagem. Mas tenho nítida todas as sensações, as cores do campo, o cheiro da terra, resquícios da chuva de ontem... Só pude ver isso, porque não enxergava, entende ? Não pretende com isso captar a realidade das coisas. Ao contrário, tenho certeza que as minhas sensações, as cores do campo, o cheio da terra e a chuva eram só meus.

– Entendo.... você fecha os olhos e se volta a si. Essa sua intimidade com a vida é diferente, não ?

– Creio que sim... afinal, eu não tenho certeza da vida, eu tenho uma intimidade com a existência. Acho que estamos falando disso o tempo, não ? Tenho sempre a sensação de que voltamos ao ponto de partida...

– É natural que isso aconteça. Você vai se sentir assim algumas vezes durante o processo... É preciso coragem.

– Às vezes, não me reconheço... A vida parece-me absolutamente irreal, mesmo em sua realidade direta. Coisas tangíveis como os campos, as cidades, as serras são completamente fictícias, pois são frutos da sensação de nós mesmos. As experiências da vida nada nos ensinam...

– Concordo com você, P. A vida não ensina nada. Agora, se o contato com a realidade for restringido e analisarmos a situação podemos chegar à verdadeira experiência. Tudo está em nós. Todas as experiências.

A chuva continuava forte e contradizia a cor ingênua das paredes. Por vezes, meus olhos passavam por V. e ficavam encostados frente a frente a parede. A teus.