terça-feira, 29 de abril de 2014

Ressurreição

"- E ele?
- Amava-me, creio, mas não entendíamos o amor do mesmo modo; tal foi o meu doloroso e tardio desencanto. Para mim era um êxtase divino, uma espécie de sonho em ação, uma transfusão absoluta de alma para alma; para ele o amor era um sentimento moderado, regrado, um pretexto conjugal, sem ardores, sem asas, sem ilusões... Erraríamos ambos, quem sabe?
- Vejo que eram incompatíveis, interrompeu Félix; mas, por que exigir de todos essa maneira de ver e sentir, que é mais da imaginação do que da realidade?
Lívia levantou os ombros.
- Estou explicando a situação da minha alma, continuou ela. Foi aflitiva e triste; não lha ocultei. Riu-se de mim. Era um homem apático e frio; honesto, é verdade, e bom coração, mas falávamos língua diversa e não nos podíamos entender. Confiei todavia na influência do amor. Empreendi a tarefa de o trazer à atmosfera dos meus sentimentos, errada tentativa, que só me produziu atribulação e cansaço. Fatigava-o com isso a que ele chamava pieguices poéticas; da fadiga passou à exasperação, da exasperação ao tédio. No dia em que o tédio apareceu conheci que o mal estava consumado. Quis emendá-lo e não pude. Tinha feito da nossa vida conjugal um deserto; e se minha alma chamava contra o destino, minha consciência me acusava de um erro, o erro de haver perturbado a paz doméstica, a troco de um sonho que não veio. Não me faço melhor do que sou, bem vês; mas uma parte da culpa será da natureza que me fez tão pueril? Tal é o meu receio agora, continuou Lívia depois de alguns segundos de silêncio; às vezes cuido que não vim ao mundo para ser feliz nem para dar a felicidade a ninguém. Nasci defeituosa, parece. Serás tu capaz de desfazer a apreensão ou corrigir o defeito?"

ASSIS, Machado de. Ressurreição. São Paulo: FTD, 2002. p. 88-89.

domingo, 27 de abril de 2014

2h08

Decerto.
Deserto...
Disserto,
Deleto
Dilema?

domingo, 6 de abril de 2014

Releitura

"Amo-te tanto que te não sei amar, amo tanto o teu corpo e o que em ti não é o teu corpo que não compreendo porque nos perdemos se a cada passo te encontro, se sempre ao beijar-te beijei mais do que a carne que és feita, se o nosso casamento definhou de mocidade como os outros de velhice, se depois de ti a minha solidão incha do teu cheiro, do entusiasmo dos teus projetos e do redondo das tuas nádegas, se sufoco da ternura de que não consigo falar, aqui neste momento, amor, me despeço e te chamo sabendo que não virás e desejando que venhas do mesmo modo que, como diz Molero, um cego espera os olhos que encomendou pelo correio." 


ANTUNES, Antônio Lobo. Memória de Elefante. Lisboa: Dom Quixote, 2000.

sábado, 5 de abril de 2014

MEMÓRIA

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis 
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
estas ficarão.

(Carlos Drummond de Andrade)