sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Eu, Fernando

"Cara tia,

Nunca quis fazê-la triste mas esta carta vai deixá-la triste. Eu próprio me entristeço enquanto a escrevo, porque esta é uma carta desolada que vai já sem mim e porque a não voltarei a ver, a si de quem eu sempre gostei, cara tia.

Já cá não estou e, se muito quis abalar em silêncio com passos firmados da noite, não pude partir sem lhe deixar algumas palavras que, se consolo não são, de bálsamo lhe possam servir.

A mim nenhuma droga me pode já tolher a dor, porque a dor que trago está cravada no começo do que sou e me atravessa como sangue que corre. Muitas vezes refleti sobre se isto a que chamo dor e que eu sinto tão natural não será afinal de todos os homens, e que outros que não eu lhe chamem outras coisas e durmam com ela sem dela se estranharem.

Não tenho nome para isto, cara tia, sei que dói, que me foi roendo dentro e me deixou escavado de tudo, oco de mim. O que fui procurando para me encher de novo nunca me chegou: o saber, as amizades, a música, o amor, as letras, a escrita, também o álcool. Assim me soube poço, mais do que vazio, um buraco por onde as coisas caem e se perdem para sempre.

Sabe, tia, não sou insensível a nada, sei reconhecer o que é belo e sentir prazer num dia de sol, no sabor de uma romã ou no toque de uma mão. São contudo sementes atiradas a solo estéril, porque aqui nada se dá e tudo seca ou apodrece.

Que fazer então, tia? Viver assim é andar aos tombos. Por sorte ou destino fui capaz de me bastar nesta amargura, não tendo nunca arrastado quem longe estará seguramente melhor. Mas até quando poderia eu garantir essa desambição? São tão fracos os homens, somos todos tão falíveis, que mais tarde ou mais cedo eu haveria de encontrar alguém e, em lugar de dividir, multiplicar desgostos,

Concluindo, cara tia, peço-lhe que pelo meu gesto não veja em mim o altruísta que não sou nem o malvado que não quis ser. Assim como vim, agora vou, somente porque assim haveria de ser.

Que os beijos que lhe deixo possam secar as lágrimas que não mereço, não se amargure, tia, que eu vou no vento, a minha alma vai nele e finalmente há de respirar.

O eternamente seu,
Fernando"


CAMAREIRO, Nuno. No meu peito não cabem pássaros. Rio de Janeiro: Leya, 2012. p. 183-184. 

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